O vírus da imunodeficiência humana (HIV) e o SARS-CoV-2 não se parecem em quase nada, mas a resposta à pandemia de covid-19 tem muito a aprender com as quatro décadas de esforços contra a Aids. Não só em matéria de pesquisa e desenvolvimento, mas também de comunicação, comportamento humano, equidade e implementação de programas para prevenir, detectar e tratar a infecção em escala mundial. Sobretudo com vistas a evitar futuras ondas de grande impacto e preparar a distribuição das vacinas.

Pesquisar hoje as epidemias de amanhã

Foram necessárias décadas de pesquisa sobre questões que nada têm a ver com um coronavírus para que os protótipos de vacinas contra a covid-19 pudessem ser desenvolvidos em questão de meses. É o que explica o fundador das unidades de Pesquisa do HIV e Câncer da Universidade Harvard, William Hasseltine, que liderou o trabalho de sequenciar o genoma do HIV na década de 1980.

“A pesquisa sobre o HIV foi absolutamente vital para a covid-19: legou muitos dos cientistas que agora lideram a pesquisa sobre o novo vírus junto com a infraestrutura para realizar estudos e ensaios clínicos. Os primeiros fármacos efetivos contra a Aids, por sua vez, eram medicamentos que tinham sido rejeitados para o câncer”, conta Hasseltine que, por coincidência, foi uma das primeiras pessoas a se salvarem de morrer graças a outra inovação, a penicilina, em 1945.

“Sem o fracasso das vacinas contra o HIV não teríamos o sucesso das vacinas contra o SARS-CoV-2” observa José Alcamí, que dirige a Unidade da Imunopatologia da Aids do Instituto de Saúde Carlos III, em Madri. Protótipos como os dos laboratórios Moderna e AstraZeneca se baseiam em novos modelos de vacinas que vinham sendo testados em doenças como zika, ebola, febre amarela e, sobretudo, a Aids.

Birgit Poniatowski, diretora-executiva da Sociedade Internacional de Aids (IAS), destaca os níveis de colaboração sem precedentes suscitados pela covid-19 e como a IAS está promovendo o diálogo entre as diversas comunidades científicas. “Entretanto, não devemos nos esquecer do HIV nestes tempos difíceis; preocupa-nos o fato de que muitos pesquisadores passaram para a covid-19 e já não têm tempo para continuar seu trabalho no HIV”, afirma. “Também eu gostaria que o mesmo entusiasmo [em torno da covid-19] se tornasse extensivo às demais doenças infecciosas, incluindo a tuberculose, a malária e o HIV, para o qual ainda não existe uma vacina”.

Linda-gail Bekker, vice-diretora do Centro Desmond Tutu para o HIV, fala da África do Sul, um dos territórios mais afetados pelo HIV e a tuberculose no mundo e o país da África subsaariana com mais casos de doentes por coronavírus. “O envolvimento do setor privado no desenvolvimento de vacinas e medicamentos para a covid-19 não tem precedentes; não a vimos nem sequer no HIV ou a tuberculose”, afirma Bekker.

Vacinas sim, tratamentos também

Os recursos para pesquisa sobre a covid-19 se concentraram no desenvolvimento de vacinas, deixando o desenvolvimento de fármacos em um segundo plano. Isso apesar de a luta contra o HIV já ter revelado a falsa dicotomia entre prevenção e tratamento e o fato de não haver panaceia, e sim uma combinação de ferramentas, segundo a diretora do Centro Internacional de Pesquisa Clínica da Universidade de Washington, Connie Celum. “O HIV nos ensinou que o tratamento também é prevenção, no sentido de que diminui a carga viral a ponto de evitar a transmissão” diz, apontando algo que poderia ocorrer também com a covid-19.

Os medicamentos para a covid-19 poderiam desempenhar um papel importante inclusive num mundo com vacinas. Sobretudo, levando-se em conta que sua distribuição não se dará da noite para o dia. Os fármacos poderiam evitar que os casos leves se transformem em severos; reduzir o tempo de hospitalização e frear o contágio, embora, segundo Celum, fosse necessária uma injeção de recursos para desenvolver produtos específicos para o coronavírus no lugar de reutilizar os existentes.

Os especialistas coincidem em apontar que a covid-19 chegou para ficar e que a aspiração é conseguir manejá-la como o vírus da gripe. Mas isso exige apoiar a pesquisa científica de forma sustentada ou confrontar as consequências.

Hasseltine cita um exemplo: na década passada, estavam sendo desenvolvidos fármacos contra a SARS e a MERS que também poderiam ter funcionado contra o SARS-CoV-2, mas, passado o alarme, os recursos foram retirados, e a iniciativa ficou no ar. “A lição é que não se deve nunca baixar a guarda quando se trata de financiar pesquisas antivirais”, diz o cientista e também fundador de uma dúzia de empresas biotecnológicas.

Gerar confiança

As normas são importantes, mas não bastam para conter doenças infecciosas como o HIV e a covid-19. Elas só podem ser controladas se os cidadãos confiarem nas estratégias de saúde pública de seus países e decidirem colaborar para protegerem a si mesmos e aos outros. Um dos trabalhos primordiais das autoridades, e também dos cientistas, é gerar essa confiança.

Perguntada sobre como os Governos estão se saindo, Sharon Lewin, diretora do Instituto Peter Doherty de Infecções e Imunidade de Melbourne (Austrália), afirma: “É como se cada país estivesse sendo examinado ao mesmo tempo e num quarto diferente; os resultados estão sendo muito desiguais”. Dois elementos importantes para melhorar a nota dos Governos são uma comunicação efetiva e mecanismos que facilitem o cumprimento das políticas de saúde pública, desde ajudas econômicas até traduzir as informações para imigrantes.

“É essencial que os cientistas sejam ouvidos e que a ciência seja transmitida ao público de forma clara e sem ambiguidades; e quando algo não se sabe, é preciso dizer”, diz Bekker, do Instituto Desmond Tutu. Para Celum, da Universidade de Washington, os cientistas também têm um papel a desempenhar. Quando saltou o alarme pelo HIV, na década de 1980, a Internet não existia, por exemplo. “Como cientistas, devemos ajudar o público a diferenciar entre resultados preliminares e provas sólidas, entre os estudos confiáveis e outros pequenos ou mal desenhados.”

Hasseltine está de acordo, mas também salienta a responsabilidade individual para o bem-estar comum. “A ciência foi estelar tanto no caso do HIV como da covid-19, mas não é suficiente. É preciso ter liderança política e solidariedade social para controlar estas pandemias”, diz. “A liberdade individual é importante, mas tem limites: quando em plena pandemia dizemos que estamos no direito de não usar máscara e ir ao bar toda noite, estamos violando esses limites.” Em um mundo globalizado, isso significa que o vírus não só continua sendo transmitido entre vizinhos, mas também entre países, muitos deles com sistemas de saúde frágeis já antes da chegada da covid-19.

Defender os direitos humanos

Políticas subnacionais incoerentes e descoordenadas. Restrições draconianas. Infrações com grande repercussão. Politização da resposta. Tensões sobre o acesso à vacina. Contradições. Negação da realidade. Segundo os especialistas, a covid-19 fez estes e outros fatores aflorarem. E, como no caso do HIV, expôs a vulnerabilidade social e inequidade no acesso aos serviços de saúde. “As pandemias se fortalecem onde há desigualdade”, afirma a diretora-executiva do UNAids (agência da ONU para a doença), Winnie Byanyima, que defende a prevalência da saúde frente aos benefícios econômicos através de iniciativas como The People’s Vaccine Alliance. Falando de Nairóbi, ela cobra uma resposta global, multissetorial e com lideranças femininas. Uma resposta que ponha as pessoas mais vulneráveis no centro, servindo-se da experiência com o HIV.

(Fonte: El País)

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